Autora: Lola Aronovich
Fonte: Escreva Lola Escreva
Introdução: Alex Rodrigues
Uma coisa que sempre me intriga quando vemos notícias de mulheres que sofrem algum tipo de violência nas mãos de seus companheiros é a seguinte pergunta:
- Mas por que elas continuam com eles? Por que a mulher não quebra o laço? Por que se sujeitar, às vezes por anos a fio, a todo tipo de violência?
É, para mim, muito difícil entender esse tipo de situação, pois não sei se conseguiria viver ao lado de uma pessoa que não demonstrasse um mínimo de respeito. E quando minha empatia aflora, meu estômago embrulha ao ler, ver ou ouvir casos desse tipo de violência (na verdade, de qualquer outro tipo).
Por outro lado, parece-me que a violência contra a mulher não é simplesmente uma ação individual, mas o reflexo de uma sociedade ainda machista, na qual algo tão absurdo quanto a suposta superioridade do homem em relação à mulher (e o sentimento de posse e dominação) ainda persiste no imaginário das pessoas, fazendo com que algumas mulheres tenham a triste ideia de que a violência que
sofrem pode ser justificada.A autora do texto a seguir, Lola Aronovich, recebeu o seguinte comentário de uma leitora identificada como Carol:
“Ontem um amigo me disse que as mulheres gostam mesmo é de um homem que as abuse. E que prova disso são essas mulheres que apanham e são maltratadas pelo marido/namorado mas não largam deles, e continuam amando-os. Eu não sei mto bem como argumentar. Embora eu saiba que tem algo mto errado nessa forma de pensar, eu não consigo colocar meu dedo exatamente no ponto que deveria. Eu mesma já estive numa situação desse tipo, da qual não conseguia me desvencilhar. Ao mesmo tempo que eu sei o que me segurava ali, eu não sei até onde isso pode justificar todos os casos, e não sei exatamente qual a raiz exata desse comportamento. É uma situação mto difícil, q até hoje não me sinto com liberdade para expor aos outros, pq me sinto culpada e responsável, no final das contas, por me deixar cair numa armadilha tão absurda.”
Diante desse desabafo, Lola escreveu em resposta o texto a seguir, que, na minha opinião, lança algumas luzes que ajudam na reflexão do assunto.
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Talvez sua dificuldade em entender por que mulheres são abusadas com seus companheiros e continuam com eles, Carol, venha de uma vontade de querer encontrar uma explicação exata para todos os casos, quando ― arrisco dizer sem ser psicóloga ― isso não existe. A própria Carol deixou um link para um ótimo post da Eliane Brum em que ela trata da autobiografia de Natascha Kampusch, a menina austríaca que foi sequestrada e viveu num cativeiro dos 10 aos 18 anos, até que, num momento de distração de seu algoz, e de coragem descomunal da parte dela, correu para a rua. O rapaz se matou, e a moça, passada a comoção geral, virou persona non grata por insistir em não se comportar como vítima tradicional. Acho que vários trechos do livro de Natascha são completamente pertinentes pra pensar a questão de por que tantas mulheres que apanham não fogem, não denunciam, e, em muitos casos, até perdoam e voltam para seus carrascos:
“Se eu tivesse apenas o odiado, esse ódio teria me consumido e me tirado a força de que eu precisava para sobreviver. Como naquele momento pude captar um lampejo do ser humano pequeno,desorientado e fraco por trás da máscara do sequestrador, pude me aproximar dele. Então, olhei em seus olhos e disse:
– Eu perdoo você, porque todo mundo erra às vezes.
Foi um passo que pode parecer estranho e doentio para muitas pessoas. Afinal de contas, o ‘erro’ dele custara minha liberdade. Mas era a única coisa a fazer. Eu tinha de conseguir conviver com aquele homem, caso contrário não sobreviveria.
[...]percebi que, em certa medida, também idealizei a sociedade. Vivemos em um mundo em que as mulheres apanham e são incapazes de abandonar o homem que bate nelas, embora, em tese, a porta esteja aberta. Uma em cada quatro mulheres é vítima de violência extrema. Uma em cada duas mulheres sofre assédio sexual durante a vida. Esses crimes estão em toda parte e podem ocorrer atrás de qualquer porta do país, em qualquer dia, e talvez só provoquem um dar de ombros ou uma indignação superficial.
Nossa sociedade precisa de criminosos como Wolfgang Priklopil para dar um rosto ao mal e afastá-lo dela mesma. É preciso ver imagens desses porões para que não se vejam os muitos lares em que a violência ergue sua face burguesa e conformista. A sociedade usa as vítimas desses casos sensacionalistas, como o meu, para se despir da responsabilidade pelas muitas vítimas sem nome dos crimes praticados diariamente, vítimas que não recebem ajuda ― mesmo quando pedem.”
Incrivelmente lúcidas as declarações de Natascha, que merece toda nossa solidariedade e respeito, assim como todas as mulheres (e as muitas crianças, e os poucos homens) que sofrem abuso das mãos de seus companheiros, ou de pessoas que dizem (e talvez até acreditem) que as amam. Saiu agora uma pesquisa dizendo que, a cada dois minutos, cinco mulheres são agredidas no Brasil. Ou seja, não é um problema individual, do tipo que não devemos nos intrometer, já que é nóia daquele casalzinho específico ali. É uma chaga de toda a sociedade. Por isso, precisamos urgentemente de uma campanha contra o machismo, como a que o Equador fez e continua fazendo.
Eu penso sempre na Ana, uma menina de 18 anos que publicou um guest post terrível aqui no blog, em junho. Por coincidência, na mesma manhã que saiu o relato dela, eu e minha turma de Inglês Técnico falamos de violência doméstica e assassinatos de mulheres pelos parceiros (um texto que líamos era sobre um marido absolvido por matar a esposa durante o sono). E muitos alunos se mostravam indignados com as mulheres que aceitam tudo caladas, sem procurar ajuda, voltando pros agressores, revoltando-se contra quem tenta auxiliá-las. O depoimento da Ana proporciona pistas valiosas sobre por que isso acontece.
Ana tinha 13 anos quando seu namorado de 21 bateu nela pela primeira vez — um tapa no meio da rua. Uma senhora veio ajudá-la e olhou feio pro rapaz, e Ana sentiu raiva… da senhora que quis ajudá-la. Por quê? Por vergonha, por medo. Ela diz: “O jeito que ele me bateu enfiou na minha cabeça que ele tinha total domínio sobre mim e que eu seria a pior pessoa do mundo se não o obedecesse”.
A menina de 13 anos continuou apanhando quase diariamente durante quatro meses, sem contar a ninguém, nem a seus pais, que a amavam tanto. Em suas palavras: “Acho que o pior era isso, a repressão; eu achava que não havia outra saída, eu só podia me conformar, era a minha sina. [...] Eu desejava que ele morresse e me culpava por isso, e cheguei a achar que merecia apanhar por desejar uma coisa tão horrenda. Eu aprendi a apanhar em silêncio porque ele se empolgava se eu começava a chorar…”
Um dia o namorado a chutou forte na bexiga, o que fez com que ela urinasse, e ele riu. Aquilo foi demais: “eu percebi, ainda que por um momento, que ele que era o bosta da história, ele que era um lixo. E no dia seguinte ele passou na minha casa e eu não desci”.
Como aponta Eliane, perdoar seu agressor não é um ato passivo. Não descer, como decidiu fazer Ana, também foi um ato ativo. Agora imagina só, tudo que Natascha tinha que fazer era andar alguns passos e sair correndo pelo portão. Assim como tudo que Ana tinha que fazer era não descer do apê dos seus pais quando o namorado aparecia lá embaixo. Parece tão pouco, né? E mesmo assim as amarras psicológicas são gigantescas. E as duas, apesar de crianças, não tinham dependentes. O que faz uma mulher com filhos numa situação de violência doméstica? Imagina uma mulher economicamente dependente do marido pra viver. Uma mulher que não tenha pra onde ir. Que talvez tenha passado a vida toda acreditando que casamento é a maior realização feminina e que é algo sagrado, para sempre.
Não podemos perder o foco, nunca. A culpa não é de quem apanha, a culpa é de quem bate. A culpa também é de quem ouve tudo e pensa que é briguinha de marido e mulher e por isso não deve meter a colher. A culpa é de quem acha que casos assim não existam, e de quem acha que mulher gosta de apanhar. A culpa é de uma sociedade repressora que ensina aos homens que devem resolver os conflitos através da violência, e que ensina as mulheres a não reagir jamais. A culpa é de um Estado que não garante proteção e assistência àquelas que precisam.
Mas claro que é mais fácil culpar a vítima ou os pais e simplesmente chamar o agressor de monstro do que discutir o que leva alguém a agir dessa forma. Porque não é um ou outro homem que trata a mulher como posse, são muitos. Não é um ou outro que bate na mulher. Não é um ou outro que não aceita terminar o relacionamento, e mata a mulher para se vingar, ou para ela não ser de mais ninguém. São muitos. São dez mulheres mortas por dia no Brasil, todo dia.
E se mesmo nós que somos mulheres feministas, cientes que essas atrocidades acontecem, respondemos passivamente a tantas agressões, se não conseguimos denunciar nosso estuprador, se nos sentimos culpadas de algum modo pelo abuso que sofremos, como podemos não compreender as mulheres que apanham caladas de seus companheiros?
Pois é. Espero ter te ajudado a entender um pouco melhor a resposta.
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