Eu, particularmente, acho um tremendo absurdo que se cogite a existência da disciplina de Ensino Religioso em escolas públicas, mesmo que a matrícula seja facultativa como teoricamente funciona hoje. Em um Estado Laico como o Brasil, não deveria caber ao poder público privilegiar (e nem, obviamente, prejudicar) qualquer religião (ou a ausência dela).
Atualmente, duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adin) questionam a oferta do ensino religioso no formato atual e aguardam julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma delas foi proposta pela Procuradoria-Geral da República (PGR) e questiona o acordo firmado em 2009 entre o governo brasileiro e o Vaticano, o qual determina que o ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. Ao pautar o ensino religioso por doutrinas ligadas a igrejas, o acordo, na avaliação da PGR, afronta o princípio da laicidade.
Porém, enquanto o ensino religioso existe dentro de escolas públicas, inclusive com a previsão constitucional para tal, o máximo que se poderia admitir, a meu ver, é a disponibilização de
aulas que tratem da história do surgimento e desenvolvimento das principais religiões existentes. Mas não é isso o que acontece, nem de longe.Segundo as pesquisadoras Débora Diniz, Tatiana Lionço e Vanessa Carrião, autoras do livro “Laicidade e Ensino Religioso”, “não há igualdade de representação religiosa nas salas de aula. É um ensino cristão, majoritariamente católico, e não há igualdade de representação religiosa com outros grupos, principalmente os minoritários”.
Especialistas em educação acreditam que o perfil do profissional responsável pelas aulas de ensino religioso deve ser o de um professor capaz de abordar aspectos de todas as religiões, sem privilegiar nenhuma delas. Segundo Elcio Cecchetti, coordenadordo Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (Fonaper), “uma pessoa sem formação dificilmente conseguirá falar com base em um ponto de vista científico sobre essa diversidade religiosa. A gente precisa ter uma formação que consiga trazer a diversidade com propriedade, com olhares das várias ciências humanas e sociais para que o olhar do professor seja o mais amplo possível, que ele se dispa de preconceitos e que, embora tenha seu credo ou não, ele possa trabalhar com bastante seriedade e sem proselitismo na prática pedagógica”.
Todavia, infelizmente, não há diretrizes nacionais ou parâmetros curriculares que definam o conteúdo a ser abordado nas aulas de ensino religioso das escolas públicas do país. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, definiu que cada estado deve criar normas para a oferta da disciplina, o que abriu espaço para uma variedade de modelos adotados em cada rede de ensino, embora essa mesma lei tenha uma diretriz clara sobre os limites do ensino religioso: “Não pode servir a qualquer forma de proselitismo, desta ou daquela tendência, deste ou daquele credo religioso. Mas, infelizmente, isso não é sempre observado”, aponta César Callegari, do Conselho Nacional de Educação (CNE).
A vice-procuradora da República Deborah Duprat, autora da Adin citada acima, defende que a única forma de compatibilizar a oferta dessa disciplina no país é tratar o assunto sob a ótica da história das religiões, visando a garantir que não ocorra qualquer tipo de proselitismo dentro das salas de aula das escolas públicas. Segundo Deborah Duprat, o ensino do tipo confessional atualmente majoritário nas escolas do país (conforme atestado pelo estudo de Débora Diniz e colaboradoras) seria incompatível com a laicidade pois “a religião com esse caráter de proselitismo, confessional, priva o aluno, que é um público formado basicamente por crianças e adolescentes, da autonomia para fazer as suas escolhas essenciais, inclusive no campo da cidadania”. A vice-procuradora, acertadamente, afirma que em um país laico “Pretende-se que o Estado e a criança que estuda na escola fornecida por ele esteja livre desse tipo de coerção”.
Deborah Duprat defende com veemência que o que deve ser ensinado “é a história das religiões e não seus dogmas e as crenças”; além disso, os professores da disciplina deveriam ser “aqueles regulares das escolas, admitidos por concurso público, e não aqueles egressos de uma ou outra confissão religiosa”. Como ela muito bem levanta, é difícil “imaginar o que seria a cabeça de crianças e adolescentes ora escutando dogmas de uma religião ora de outras. E quem seria esse profissional capaz de abordar aspectos de todas as religiões? Depois, como ficam os ateus? Eles também têm direito a um espaço livre desse tipo de influência.”
Não bastasse toda essa questão, vez ou outra ainda ficamos sabendo de casos da mais perversa intolerância religiosa praticada em ambiente escolar, como por exemplo o acontecido com Fernando (nome fictício), que conversava com os amigos quando foi expulso da sala pela professora aos gritos de “demônio” e “filho do capeta”. Não a tinha desrespeitado nem deixado de fazer alguma tarefa. Seu “pecado” foi usar colares de contas por debaixo do uniforme, símbolos da sua religião, o candomblé. O fato de o menino, com então 13 anos, manifestar-se abertamente sobre sua crença provocou a ira de uma professora de português, que era evangélica. Depois do episódio, ela proibiu Fernando de assistir às suas aulas e orientou outros alunos para que não falassem mais com o colega. A mãe de Fernando, diante da omissão da direção da escola em lidar com a situação, registrou um boletim de ocorrência contra a docente e agora o caso aguarda julgamento no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. A pesquisadora Denise Carrera, ligada à Plataforma de Direitos Humanos, Econômicos, Sociais, Culturais e Ambientais (Dhesca Brasil), está conduzindo uma pesquisa sobre o assunto e afirma que “a intolerância religiosa no Brasil se manifesta principalmente contra as pessoas vinculadas às religiões de matriz africana”. A pesquisadora também esclarece que há “um crescimento do número de professores ligados a determinadas denominações neopentecostais que compreendem que o seu fazer profissional deve ser um desdobramento do seu vínculo religioso. Ou seja, ele pensa o fazer profissional como parte da doutrinação, nessa perspectiva do proselitismo”.
Fecho este texto com uma frase certeira da Denise Carrera:
“a escola deve se constituir como um espaço laico que respeite a liberdade religiosa, mas não que propague um determinado credo ou constranja aqueles que não têm vínculo religioso algum”.
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