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Os princípios morais baseados na superstição penetram nas sociedades civilizadas muito mais profundamente do que se imagina. Pitágoras proibia o feijão e Empédocles julgava que era nocivo mastigar folhas de louro. Os hindus estremecem ante a idéia de comer carne bovina, ao passo que os maometanos e judeus ortodoxos consideram impura a carne do porco. Santo Agostinho, o missionário da Grã-Bretanha, escreveu ao Papa Gregório o Grande para saber se as pessoas casadas podiam entrar na igreja se tivessem tido relações na noite precedente, tendo o Papa estabelecido que só o poderiam fazer após um banho cerimonial. Houve uma lei em Connecticut que considerava ilegal um homem beijar sua esposa aos domingos. Em 1916, um clérigo da Escócia escreveu uma carta à imprensa atribuindo os insucessos dos Aliados na luta contra a Alemanha ao fato de o governo inglês haver encorajado o plantio de batatas aos domingos.
Todas essas opiniões só podem ser justificadas à
base do tabu.Um dos melhores exemplos de tabu é a vigência de leis ou regras proibindo várias formas de endogamia.
Às vezes uma tribo é dividida em um certo número de grupos e o homem tem de escolher sua esposa em grupo diferente do seu. Na Igreja Grega os padrinhos de uma mesma criança não se podem casar. Na Inglaterra, até há pouco, o homem não podia desposar a irmã de sua falecida mulher.
Tais proibições são impossíveis de justificar sob a alegação de que essas uniões proibidas possam causar algum mal; encontram apoio, tão somente, no respeito às velhas superstições. Mas, além disso, as formas de incesto que a maioria de nós outros ainda considera como não devendo merecer a sanção da lei são encaradas, por muitos povos, com um horror que não guarda proporção com o mal que possam acarretar, e que tem de ser considerado como resultante de um tabu primitivo.
O tabu apresenta grandes vantagens como fonte de comportamento moral. Psicologicamente é muito mais imperativo do que qualquer lei ou regra puramente racional. Compare, por exemplo, a indignada aversão ao incesto com a calma reprovação que suscitam crimes tais como o de falsificação, que não são encarados supersticiosamente. Além disso, a moral baseada no tabu pode ser perfeitamente precisa e definida. É verdade que ela pode proscrever atos inofensivos, como o de comer feijão, mas, provavelmente, proibirá também ações genuinamente perniciosas, tais como o assassinato, e o faz com mais sucesso que qualquer outro método ético ao alcance das coletividades primitivas onde, além disso, contribui para assegurar a estabilidade dos governos.
Quando os ortodoxos argumentam que a rejeição dos dogmas leva, certamente, à decadência dos costumes, o maior dos argumentos em que se apóiam é a utilidade do tabu. Quando os homens deixam de sentir um respeito supersticioso por preceitos antigos e veneráveis, podem não se contentar mais com desposar a irmã de sua falecida esposa ou plantar batatas aos domingos; podem prosseguir para pecados mais atrozes como o homicídio e a traição.
No entanto, os argumentos contra a validade da moral tabu são, para mim, de peso muito maior que os a ela favoráveis e, como estou empenhado na tentativa de expor uma ética racional, preciso apresentar essas opiniões a fim de justificar minha tese.
O primeiro argumento é que, numa sociedade onde a educação é moderna e científica, é difícil manter o respeito pelo que é meramente tradicional, a menos que, por um rígido controle sobre a educação, se elimine a possibilidade de haver pensamento livre. Se você for educado como protestante, deverá ser mantido alheio ao fato de ser o sábado, e não o domingo, o dia no qual é pecado plantar batatas. Se sua educação for católica, deverá ignorar que, a despeito da indissolubilidade do casamento, duques e duquesas podem ter seus casamentos anulados pela Igreja diante de provas que não seriam julgadas suficientes para um casal plebeu. Esse grau necessário de estupidez é socialmente pernicioso e só pode ser obtido por meio de um regime rigidamente obscurantista.
O segundo argumento é que, se a educação moral for limitada à inculcação de tabus, o homem que desrespeitar um deles derrubará, provavelmente, todos os demais. Se tiverem lhe ensinado que todos os Dez Mandamentos são obrigatórios e chegar à conclusão de que o trabalho nos dias de guarda não constitui pecado, poderá terminar concluindo ser o assassinato também admissível e não haver razão para considerar qualquer ato pior do que o outro. O colapso moral que acompanharia uma irrupção repentina de livre-pensamento é atribuível à falta de uma base racional para o código ético tradicional. Não houve tal colapso entre os livre-pensadores ingleses do século XIX principalmente porque eles acreditavam no utilitarismo como base não teológica para a obediência àqueles preceitos morais considerados válidos, os quais eram, de fato, todos os que contribuíam para o bem-estar da comunidade.
O terceiro argumento se baseia no fato de, em qualquer código moral inspirado em tabus que tenha existido até hoje, sempre terem havido alguns preceitos positivamente perniciosos, alguns em alto grau. Considere, por exemplo, o texto seguinte: “Não permitirás que viva uma feiticeira.” (Êxodo, XXII, 18). Como resultado desse versículo, e apenas na Alemanha, foram sacrificadas umas 100.000 feiticeiras nos cem anos decorridos entre 1450 e 1550. A crença na feitiçaria estava generalizadas na Escócia e foi alimentada por Jaime I, na Inglaterra. Foi para adulá-lo que “Macbeth” foi escrito, e as feiticeiras faziam parte da bajulação. Sir Thomas Browne afirmava que quem negasse a bruxaria era ateu. Não foi a caridade cristã, mas a propagação dos conhecimentos científicos, a partir de Newton, que pôs fim à queima de mulheres inofensivas, na expiação de crimes imaginários. Os elementos tabu na moral convencional são menos violentos hoje do que eram há 300 anos, mas ainda continua, em parte, obstáculos aos sentimentos e costumes humanos; tal é o caso da oposição ao controle da natalidade e à eutanásia.
Mas existe outra fonte de sentimentos e preceitos éticos inteiramente diferente das até aqui mencionadas – são as concessões recíprocas ou o compromisso social. Não se baseiam, como os códigos morais que já examinamos, na superstição nem na religião; nasceram – falando-se em termos gerais – do desejo de uma vida tranqüila. Quando quero batatas, poderia ir, à noite, retirá-las do terreno do vizinho, mas ele, em revide, furtaria os frutos do meu pomar. Cada um de nós teria, então, de deixar alguém em vigilância a noite toda, para evitar tais depredações. Isto seria inconveniente e cansativo; finalmente, chegaríamos à conclusão de que dá menos trabalho respeitar as propriedades uns dos outros – sempre supondo que nenhum de nós está morrendo à míngua. A moral assim concebida, embora possa ter sido, a princípio, auxiliada por tabus ou sanções religiosas, pode sobreviver à decadência destes porque, no mínimo em intenção, oferece vantagens sobre todas as outras. Com o progresso da civilização, ela tem sido chamada a ter uma participação cada vez maior na legislação, no governo e na moral privada, embora nunca tenha inspirado emoções violentas como o horror ou a veneração que se acham ligados à religião ou à superstição.
Autor: Bertand Russell
Fonte: A Sociedade Humana na Ética e na Política – 1954
Editor: Alex Rodrigues
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